Ciclicamente,
as sondagens encarregam-se de nos lembrar que não há, em Portugal, actividade
sócio-profissional mais desacreditada e desprestigiada do que a de deputado.
Mas não há verdade que se estabeleça por sondagem e esta verdade popular é, em
grande medida, injusta. O que se passa é que, como em todas as outras
actividades, há bons e maus deputados, excelentes e péssimos. Mas, tratando-se
de uma actividade exposta ao permanente escrutínio público, é fatal que os maus
exemplos determinem a imagem global: pagam os justos pelos pecadores. Há
deputados, nomeadamente, os que trabalham nas comissões, que trabalham muito e
bem, que se preocupam com a feitura das leis, com o acompanhamento da
actividade do governo e com o bem público. Até há deputados – mas aqui concedo
que raríssimos – para quem a independência e a verdade estão acima de quaisquer
interesses partidários. E há deputados, outros, que são capazes de jamais
integrar uma comissão, jamais participarem na redacção de um projecto de lei,
jamais abrirem a boca em toda uma sessão legislativa - e, certamente, com
vantagens para todos.
Precisávamos
de menos deputados, melhores deputados e mais bem pagos. É sabido, porém, que a
demagogia de há muito assente nesta matéria determinou que os políticos
portugueses devem ser mal pagos, porque o “povo” não aceitaria outra coisa, por
muito que lhe expliquem que a democracia não tem de ser o governo dos piores ou
dos sacrificados pelo bem comum. Sendo mal pagos, os deputados lançam mão do
expediente habitual noutros lados: tentar ganhar paralelamente – em viagens,
ajudas de custo, subsídios vários, reformas especiais, indemnizações por
cessação de funções – aquilo que não ganham como vencimento. E tratam, grande
parte deles, de arranjar maneira de conciliar outras actividades remuneradas
com o seu estatuto de deputados, fazendo do exercício desta função de soberania
um part-time profissional. A maneira
como isso se consegue é através de um generoso regime de incompatibilidades,
que permite fazer quase tudo em acumulação com o assento parlamentar, e através
do mecanismo das substituições, que lhes permite, quando isso lhes interessa a
eles ou ao partido, dizer “vou ali e já venho, guardem-me o lugar”.
Esta semana (1), a Assembleia da República começou a discutir duas
reformas visando moralizar um pouco estes costumes. Como o PS era proponente de
uma delas e apoiante da outra e tem maioria absoluta, ambas obtiveram aprovação
genérica. Mas a divisão estabelecida entre os partidos, naquilo que deveria ser
uma matéria consensual de autodefesa colectiva da imagem dos deputados, não
augura longa nem feliz vida às alterações agora propostas.
Num
caso, propunha-se que ao extraordinário parlamento regional da Madeira – cujo ratio
eleitores/deputados é para aí sete vezes superior ao do continente e três vezes
ao dos Açores – se apliquem as mesmas regras de incompatibilidades que se
aplicam nos Açores e no continente. E isto, depois de o próprio parlamento da
Madeira se recusar a fazê-lo, mantendo em vigor uma excepção estatutária ao
abrigo da qual se vive lá em total promiscuidade de interesses, com deputados
votando no parlamento sobre negócios em que são parte interessada na vida
civil. Contra esta proposta do Bloco de Esquerda estão o PP e, obviamente, o
PSD nacional, o qual nunca conseguiu nem conseguirá ultrapassar esta
constrangente incoerência de defender aqui o oposto do que pratica lá. E a liderar
o oposição do PSD está o seu líder parlamentar, o madeirense Guilherme Silva,
verdadeiro deputado-modelo do sistema que se pretende restringir: é líder da
bancada parlamentar da oposição no parlamento de Lisboa e, simultaneamente,
advogado oficial do governo regional da Madeira em todas as suas disputas
judiciais, incluindo as acções que regularmente instaura contra os jornalistas
cujas opiniões não aprecia. Imagine-se a independência com que o deputado
Guilherme Silva vota em questões que impliquem a Madeira!
No
outro caso, propôs o PS, com a oposição de todos, que se restrinja o sistema de
substituições temporárias dos deputados às situações de doença prolongada,
licença de maternidade e paternidade e defesa em processo-crime onde o deputado
seja arguido. Terminaria assim o degradante sistema do “rodízio de deputados”,
em que cada qual pode sair e voltar a tempo de não perder de vez o mandato e
sempre que lhe convém ou que convém ao partido. Um sistema que conduz a
situações absurdas. Tais como a de poder haver, em determinado momento, mais
deputados substitutos em funções (que ninguém sabe quem são) do que aqueles que
foram directamente eleitos. Temos assim deputados que estão ausentes uma
temporada para exercerem funções autárquicas para que também foram eleitos,
outros que estão conjunturalmente a gerir empresas, até públicas, de cuja
administração fazem parte, outros que estão episodicamente a advogar contra o
mesmo Estado que lhes paga e que representam enquanto deputados; outros no
Brasil a dar aulas; outros a fazerem mestrados; e outros que simplesmente “andam
por aí”. Quando lhes dá jeito, metem licença; quando não têm nada de melhor
para fazer, regressam.
Pois este estado de coisas tão edificante é defendido com unhas e dentes
por todos os pequenos partidos, independentemente da sua ideologia: PP, PCP, “Os
Verdes”, Bloco de Esquerda. Por uma razão simples: porque, tendo escassos
lugares para distribuir pelos seus, socorrem-se do “rodízio parlamentar” para
manterem mobilizadas as “segundas linhas”. E nisto convergem os interesses do
partido com os dos substituídos. Onde fica, então, o sentido de voto do
eleitor? Em lado nenhum, é o que menos interessa (“votaste em nós por causa do
António? Paciência, agora levas com a Ana Rita, que te lixas!”).
De
entre todas as judiciosas e rebuscadas explicações para defender a manutenção
deste logro eleitoral, a melhor das que li veio do deputado do PCP, António
Filipe. Diz ele que se trata de uma “falsa questão” e que “as listas são
partidárias, não pessoais, hoje as pessoas votam sobretudo num projecto”.
Seguindo ao limite a lógica desta tese, segundo a qual o mandato pertence em
exclusivo ao partido e o deputado é absolutamente indiferente, estando ali
apenas a representar o “projecto”, a verdade inteira é que as pessoas votam
apenas para escolher um governo ou até o primeiro-ministro. Assim sendo, bastaria
garantir um número mínimo de deputados que assegurasse uma maioria de governo e
a representação da oposição. Digamos, qualquer coisa como 15 ou 20 deputados
chegaria.
E o
mais interessante é que, se esta tese fosse a votos, ganhava: o país diria aos
deputados que 15 ou 20 deles já seriam suficientes. Estuda-se na aerodinâmica:
é o chamado “efeito boomerang”.
Miguel Sousa Tavares
“Expresso”, 20 de Maio de 2006,
in “A história não acaba assim, Escritos políticos
2005-2012”, Clube do Autor, Lisboa, 2012.
(1)
Semana de 15 a 19.05.2006
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