sábado, 8 de setembro de 2012

A malga quebrada


Era uma das mais frias tardes da breve vida de Miguel. Talvez não estivesse tanto frio assim, talvez a fome o regelasse mais do que as condições atmosféricas. Olhou para os seus companheiros de infortúnio, uma enorme fila tiritante e adivinhou neles a mesma dor.

Recebeu a malga de papas e o calor, noutra altura algo semelhante a um escaldão, aqueceu-lhe as patas frígidas. As papas atenuar-lhe-iam o frio e fome. Sabia que havia centenas de milhar nas mesmas condições e esse número aumentava diariamente. As Organizações de Solidariedade (OS) viam-se em palpos de aranha para socorrer esta gente sem recursos, nem para se alimentarem. Desesperavam com a falta de meios financeiros que o Governo dos Porcos prometia mas não apareciam. Pudera, em tempo de míngua a prioridade não é matar a fome dos pobres e indigentes. O dinheiro faz falta para os comeretes e beberetes comemorativos disto e daquilo. Por vezes nem é necessária qualquer comemoração, basta haver uma reunião de ministros, secretários de estado ou simples Bóis.

As OS vivem da caridade para fazer caridade e uma pendência aviltante da questão é a incongruência de quem exerce múnus que deveriam estar próximos destas associações mas se afasta irremediavelmente.

Numídio Meleagris, ex-membro do CES – o muito pomposo Conselho Económico e Social – recebe uma reforma de 7.450 euros, em redondos números uma vez que o seu rendimento anual é de 104.301. Numídio é padre, membro da Ordem Franciscana e entregou a declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional como a lei o exige, embora fora do prazo devido. Mas não consta que se tenha desfeito daqueles rendimentos, mau grado o voto de pobreza a que a Ordem o obriga. É um pobre rico embora diga que tem “uma pensão aceitável mas não sou rico.” Deveria ter dito, caso essa fosse a verdade, “recebo uma reforma rica que é distribuída pelos pobres.”

Diz o padre Numídio que recebe tanto porque, enquanto na vida ativa, recebeu salários elevados resultantes das altas funções que exerceu fora do múnus de padre. É verdade que é este o princípio das leis do ISS – Instituto de Solidariedade Social: quanto maior for o salário, maior será a reforma. Conversando com um amigo, há algum tempo, disse-me ele que concordava inteiramente com esse princípio porque não queria receber a mesma reforma que fosse atribuída a quem descontou menos do que ele. Esta argumentação é uma falácia. Quem trabalha por conta de outrem, como esse amigo, descontava 11 por cento do salário bruto (passará agora para os 18) e uma parte reverte para o fundo de desemprego que, é óbvio, só pode ser recebido durante o período ativo da vida. O evidente nesta questão, o que muitos não querem ver e procuram escamotear, é que, para a dita reforma, a entidade empregadora paga também uma parte. Eram, até aqui 23,75 por cento, passam agora, por obra e graça do Quinteiro-mor, a ser 18, tanto quanto quem para eles trabalha. Esse valor, não sendo um desconto do trabalhador, faz com que a lógica do meu amigo seja um tiro no pé.

Chegados a velhos, os que receberam muito também muito amealharam. Todos passamos a ter as mesmas necessidades em alimentação, medicação e assistência médica porque as doenças, essas sim, são iguais para todos. O Governo dos Porcos, se tivesse um mínimo de vergonha, já que poder não lhe falta, deveria alterar a designação do Instituto de Solidariedade Social. É o mínimo que se exige à decência, se a houver no Palácio.

 Com a malga vazia entre as patas, sentado num rígido banco de pedra, Miguel foi abalroado por um galgo afegão que surdiu em corrida desenfreada. Miguel é um cão rafeiro sem eira nem beira, pertencente à classe das suricatas, a mais baixa da sociedade. Perdeu os pais há dois anos, atropelados pelo carro do Quinteiro-mor. Ficou órfão no primeiro ano de vida e não lhe foi reconhecido direito a qualquer subsídio ou indemnização. O Tribunal deu razão ao motorista e ao Quinteir porque, decidiu, muito embora o acidente tivesse ocorrido numa passadeira para peões e o carro circulasse a alta velocidade, o governante dirigia-se a uma importante reunião e deveria ter caminho livre, custasse o que custasse. O custo foi, como se vê, a morte dos rafeiros, coisa de somenos.

A Justiça é um órgão do Estado, mais poeticamente um Órgão de Soberania, para quem a verdade dos factos é menos importante do que a sua conjetura retórica. Miguel era muito novo e nada sabia de tribunais. Os amigos dos pais requereram para ele assistência judiciária grátis, por falta de rendimentos. Quem defende aqueles que não podem pagar um advogado estabelecido na praça dos napoleónicos, os indigentes e os quase-indigentes, são estagiários que vão para a sala de audiências apenas com o intuito de aprender as tramitações burocráticas da justiça. Entram mudos e saem calados. Ao sistema não interessa que seja de outra forma. Pobre tem que ser pobre em tudo e sabe-se que quem não tem dinheiro não tem vícios, a Justiça incluída.

O galgo faz parte da equipa de corridas do Senhor Varano Bengalense, um endinheirado réptil com o título de Barão do Cascal. Também pertence à classe das suricatas mas a presunção fá-lo renegar essa classificação. Acha-se superior por viver numa mansão mas, quando chegar a velho e lhe faltarem as forças para as corridas, será escorraçado a pontapé. Nisso não pensa ele.

Com a violência do encontrão a malga caiu-lhe das mãos e quebrou-se. Miguel olhou para os cacos contristado, para as papas derramadas ainda mais, levantou os olhos para o galgo e só viu desprezo. Apanhou os cacos e abalou dali. Sabia que tinha que arranjar maneira de os colar. De outra forma não poderia voltar a receber as papas que, naquele dia, se espalharam pelo chão empoeirado.

 

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