Era uma das mais frias tardes da breve vida de Miguel.
Talvez não estivesse tanto frio assim, talvez a fome o regelasse mais do que as
condições atmosféricas. Olhou para os seus companheiros de infortúnio, uma
enorme fila tiritante e adivinhou neles a mesma dor.
Recebeu a malga de papas e o calor, noutra altura algo
semelhante a um escaldão, aqueceu-lhe as patas frígidas. As papas atenuar-lhe-iam
o frio e fome. Sabia que havia centenas de milhar nas mesmas condições e esse
número aumentava diariamente. As Organizações de Solidariedade (OS) viam-se em
palpos de aranha para socorrer esta gente sem recursos, nem para se alimentarem.
Desesperavam com a falta de meios financeiros que o Governo dos Porcos prometia
mas não apareciam. Pudera, em tempo de míngua a prioridade não é matar a fome
dos pobres e indigentes. O dinheiro faz falta para os comeretes e beberetes
comemorativos disto e daquilo. Por vezes nem é necessária qualquer comemoração,
basta haver uma reunião de ministros, secretários de estado ou simples Bóis.
As OS vivem da caridade para fazer caridade e uma pendência
aviltante da questão é a incongruência de quem exerce múnus que deveriam estar
próximos destas associações mas se afasta irremediavelmente.
Numídio Meleagris, ex-membro do CES – o muito pomposo
Conselho Económico e Social – recebe uma reforma de 7.450 euros, em redondos
números uma vez que o seu rendimento anual é de 104.301. Numídio é padre,
membro da Ordem Franciscana e entregou a declaração de rendimentos no Tribunal
Constitucional como a lei o exige, embora fora do prazo devido. Mas não consta
que se tenha desfeito daqueles rendimentos, mau grado o voto de pobreza a que a
Ordem o obriga. É um pobre rico embora diga que tem “uma pensão aceitável mas
não sou rico.” Deveria ter dito, caso essa fosse a verdade, “recebo uma reforma
rica que é distribuída pelos pobres.”
Diz o padre Numídio que recebe tanto porque, enquanto na
vida ativa, recebeu salários elevados resultantes das altas funções que exerceu
fora do múnus de padre. É verdade que é este o princípio das leis do ISS –
Instituto de Solidariedade Social: quanto maior for o salário, maior será a
reforma. Conversando com um amigo, há algum tempo, disse-me ele que concordava
inteiramente com esse princípio porque não queria receber a mesma reforma que
fosse atribuída a quem descontou menos do que ele. Esta argumentação é uma
falácia. Quem trabalha por conta de outrem, como esse amigo, descontava 11 por
cento do salário bruto (passará agora para os 18) e uma parte reverte para o
fundo de desemprego que, é óbvio, só pode ser recebido durante o período ativo
da vida. O evidente nesta questão, o que muitos não querem ver e procuram
escamotear, é que, para a dita reforma, a entidade empregadora paga também uma
parte. Eram, até aqui 23,75 por cento, passam agora, por obra e graça do Quinteiro-mor,
a ser 18, tanto quanto quem para eles trabalha. Esse valor, não sendo um
desconto do trabalhador, faz com que a lógica do meu amigo seja um tiro no pé.
Chegados a velhos, os que receberam muito também muito
amealharam. Todos passamos a ter as mesmas necessidades em alimentação,
medicação e assistência médica porque as doenças, essas sim, são iguais para
todos. O Governo dos Porcos, se tivesse um mínimo de vergonha, já que poder não
lhe falta, deveria alterar a designação do Instituto de Solidariedade Social. É
o mínimo que se exige à decência, se a houver no Palácio.
Com a malga vazia
entre as patas, sentado num rígido banco de pedra, Miguel foi abalroado por um
galgo afegão que surdiu em corrida desenfreada. Miguel é um cão rafeiro sem
eira nem beira, pertencente à classe das suricatas, a mais baixa da sociedade.
Perdeu os pais há dois anos, atropelados pelo carro do Quinteiro-mor. Ficou
órfão no primeiro ano de vida e não lhe foi reconhecido direito a qualquer
subsídio ou indemnização. O Tribunal deu razão ao motorista e ao Quinteir
porque, decidiu, muito embora o acidente tivesse ocorrido numa passadeira para
peões e o carro circulasse a alta velocidade, o governante dirigia-se a uma
importante reunião e deveria ter caminho livre, custasse o que custasse. O
custo foi, como se vê, a morte dos rafeiros, coisa de somenos.
A Justiça é um órgão do Estado, mais poeticamente um Órgão
de Soberania, para quem a verdade dos factos é menos importante do que a sua
conjetura retórica. Miguel era muito novo e nada sabia de tribunais. Os amigos
dos pais requereram para ele assistência judiciária grátis, por falta de
rendimentos. Quem defende aqueles que não podem pagar um advogado estabelecido
na praça dos napoleónicos, os indigentes e os quase-indigentes, são estagiários
que vão para a sala de audiências apenas com o intuito de aprender as
tramitações burocráticas da justiça. Entram mudos e saem calados. Ao sistema
não interessa que seja de outra forma. Pobre tem que ser pobre em tudo e
sabe-se que quem não tem dinheiro não tem vícios, a Justiça incluída.
O galgo faz parte da equipa de corridas do Senhor Varano
Bengalense, um endinheirado réptil com o título de Barão do Cascal. Também
pertence à classe das suricatas mas a presunção fá-lo renegar essa
classificação. Acha-se superior por viver numa mansão mas, quando chegar a
velho e lhe faltarem as forças para as corridas, será escorraçado a pontapé. Nisso
não pensa ele.
Com a violência do encontrão a malga caiu-lhe das mãos e
quebrou-se. Miguel olhou para os cacos contristado, para as papas derramadas
ainda mais, levantou os olhos para o galgo e só viu desprezo. Apanhou os cacos
e abalou dali. Sabia que tinha que arranjar maneira de os colar. De outra forma
não poderia voltar a receber as papas que, naquele dia, se espalharam pelo chão
empoeirado.
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